O grão-duque Alexandre Mikhailovich da Rússia (1866-1933) |
O ano novo de 1917 começou com grandes mudanças no executivo
e ainda mais tristeza. O príncipe Golitzin, recentemente nomeado
primeiro-ministro, era uma caricatura da palavra francesa “ramolli”. Não
compreendida nada, não sabia nada e só o Nicky e a Alix poderiam explicar
porque se lembraram de nomear aquele antigo cortesão sem qualquer experiência
administrativa. Juntamente com o ministro do interior, Protopopoff, um cobarde
histérico e antigo liberar que se transformou em conservador ortodoxo graças à
magia de Rasputine, os dois eram um par extraordinário que assentava que nem
uma luva no acto final da Morte da Nação.
O grão-duque Alexandre com a sua esposa, a grã-duquesa Xenia |
Em inícios de Fevereiro, recebi ordens da Stavka para estar
presente numa conferência em São Petersburgo com os representantes dos governos
aliados para discutir as munições que iriamos precisar para os doze meses
seguintes. Decidi aproveitar esta oportunidade para me encontrar com a Alix. Em
Dezembro, durante a minha última visita à cidade, não a quis incomodar [esta
visita do grão-duque realizou-se pouco depois do assassinato de Rasputine],
mas, desta vez, sentia-me zangado o suficiente para lhe dizer aquilo que pensava.
A esta altura já todos esperávamos que rebentasse uma revolta na capital.
Alguns “especialistas” diziam que essa revolta seria iniciada dentro do
palácio, o que significava que o czar seria obrigado a abdicar a favor do seu
filho Alexei e os poderes da regência seriam entregues a um conselho de pessoas
que “compreendiam o povo russo”. Este projecto deixou-me estupefacto. Nunca
tinha conhecido ninguém que compreendesse o povo russo. A ideia parecia-me ter
origem estrangeira e acabaria por descobrir que tinha surgido da embaixada
britânica. Um jovem rico e bem-parecido visitou-me em Kiev pouco tempo depois e
falou-me por alto deste plano extraordinário, inventado pelos britânicos.
Disse-lhe que tinha escolhido o homem errado para se confessar, uma vez que
jamais um grão-duque poderia quebrar o juramento que tinha feito ao imperador.
Foi a estupidez dele que o livrou de ser castigado de forma mais severa. Depois
da revolução, tornou-se um criado muito estimado do senhor Kerensky e ocupou os
cargos de ministro das finanças e ministro dos assuntos estrangeiros.
Alexandra, Xenia e Alexandre por volta de 1912 |
Assim, cheguei a São Petersburgo, felizmente pela última vez
na vida. No dia que tinha sido marcado para a minha conversa com a Alix, chegou
uma mensagem de Czarskoe Selo a informar-me de que ela não se sentia bem e que
não me podia receber. Escrevi-lhe uma carta pouco simpática onde lhe implorava
que me deixasse falar com ela, uma vez que só ia estar na capital alguns dias.
Enquanto esperava pela resposta dela, falei com várias pessoas. O meu cunhado,
Misha [o grão-duque Miguel Alexandrovich] estava na cidade e sugeriu que
devíamos falar com o irmão dele [Nicolau II], um de cada vez, assim que eu
conseguisse falar com a Alix. O presidente da Duma, o senhor Rodzianko, um
homem gordo e insípido, visitou-me e informou-me de uma série de rumores,
teorias e planos anti-dinásticos. A arrogância dele não tinha limites.
Juntamente com as suas deficiências mentais, parecia o bobo da corte das
comédias medievais. Um mês depois, deu a Cruz de São Jorge a um soldado do
Regimento Volinsky que tinha sido o primeiro homem a matar o seu comandante em
1917. Nove meses depois, Rodzianko foi obrigado a fugir de São Petersburgo
quando passou a ser perseguido pelos bolcheviques.
O grão-duque Alexandre (esq.) com soldados durante a Primeira Guerra Mundial |
Depois recebi um
convite da Alix para um lanche em Czarskoe Selo. Ah, aqueles lanches! Tenho a
sensação que desperdicei quarenta anos da minha vida naqueles lanches em
Czarskoe Selo.
A Alix estava na cama e prometeu receber-me assim que terminássemos
a refeição. Na mesa havia oito pessoas: o Nicky, eu, o herdeiro, as quatro
grã-duquesas imperais e o ajudante-de-campo Linevich. As meninas estavam
vestidas com os seus uniformes da Cruz Vermelha e falaram do trabalho que
estavam a fazer no seu hospital. Já não as via desde a primeira semana da
guerra e achei que estavam crescidas e muito bonitas. A mais velha, Olga, tinha
opiniões muito parecidas com a sua tia, a grã-duquesa Olga Alexandrovna. A
segunda mais velha, Tatiana, era a mais bonita da família. Estavam todas
bem-dispostas Não sabiam nada sobre os eventos políticos que estavam a
acontecer. Brincaram com o irmão e elogiaram os feitos da sua tia Olga. Foi a
última vez que me sentei na mesa deles em Czarskoe Selo e, por isso, foi também
a última vez que vi os filhos do czar.
Grão-duque Alexandre Mikhailovich (centro) com o czar Nicolau II e as grã-duquesas Olga Alexandrovna, Xenia Alexandrovna, Tatiana e Olga |
Tomámos o café no salão lilás enquanto o Nicly foi até à
sala ao lado para avisar a Alix que eu já estava pronto para a ver.
Entrei com cuidado. A Alix estava deitada na cama, vestida
com uma camisa de dormir beje e com uma expressão de preocupação no seu belo
rosto que parecia anunciar problemas para este intruso indesejado. Estava
prestes a ser atacado, o que me deixou triste, uma vez que não vinha como
inimigo, mas sim para ajudar. Também não gostei de ver o Nicky sentado ao lado
dela na cama, uma vez que, na minha carta, tinha pedido especificamente para
falar com ela em privado. Seria embaraçoso avisá-la que estava a arrastar o
marido para o abismo com ele presente.
Alexandra Feodorovna |
Beijei-lhe a mão e ela tocou ao de leve na minha bochecha
com os seus lábios: a saudação mais fria que ela alguma vez me deu desde que
nos conhecemos em 1893. Peguei numa cadeira e coloquei-a perto da cama, em
frente a uma parede coberta de ícones iluminados por dois círios.
Comecei a apontar para os ícones e a dizer que gostava de
falar com ela tão abertamente como se me estivesse a confessar ao meu padre.
Dei-lhe uma ideia geral da situação política, hesitei em dizer-lhe que a
propaganda revolucionária já tinha penetrado por toda a população e que os
liberais e caluniosos estavam a acreditar nela.
Ela interrompeu-me zangada:
“Isso não é verdade. A nação continua a ser-lhe leal”, disse, virando-se para o Nicky. “Só a Duma traiçoeira e a sociedade de São
Petersburgo é que estão contra ele.”
Alexandra e Nicolau em 1917 |
Admiti que a afirmação dela estava, em parte, correcta.
“Alix, não há nada mais perigoso do que uma meia-verdade”,
disse-lhe, olhando-a directamente nos olhos. “A nação é leal ao seu czar, mas a
nação também está indignada com a influência que aquele homem, o Rasputine,
exerceu. Ninguém sabe melhor do que eu o amor e devoção que tens pelo Nickly e,
no entanto, tenho de confessar que a tua interferência nos assuntos de estado
está a prejudicar tanto o prestígio do Nicky como a concepção que o povo tem do
seu czar. Sempre fui um dos teus amigos mais fiéis, Alix, durante
vinte-e-quatro anos. Continuo a sê-lo e, como teu amigo, tenho de te avisar que
todas as classes estão contra as tuas políticas. Tens uma bela família, porque
não te dedicas a assuntos que tragam paz e harmonia? Por favor, Alix, deixa os
assuntos de estado para o teu marido.”
Ela corou e olhou para o Nicky. Ele não disse nada e
continuou a fumar. É triste que, quando falo do comportamento do último czar em
momentos de crise, tenha de repetir sempre a mesma frase: “não disse nada e
continuou a fumar.” Mas o que posso fazer se, qualquer outra frase não
corresponde à verdade?
Nicolau II por volta de 1915 |
Continuei. Expliquei que, por muito que fosse contra as
reformas parlamentares na Rússia, acreditava que conceder um governo aceitável
à Duma iria retirar responsabilidades ao Nicky e tornar a tarefa dele mais
fácil.
“Por favor, Alix, não deixes que a tua sede de vingança
supere o teu bom senso. Se houvesse uma mudança radical nas nossas políticas,
poderíamos desviar a raiva da população. Não deixes que essa raiva expluda.”
A Alix escarniou-me. “Esta conversa é ridícula. O Nicky é um
autocrata. Como pode partilhar os seus direitos divinos com um parlamento?”
Alexandre Mikhailovich com a sua esposa, Xenia |
“Estás muito enganada, Alix. O teu marido deixou de ser
autocrata no dia 17 de Outubro de 1905. Só nesse dia é que ele podia ter
pensado nos direitos divinos dele. Agora é tarde demais. Talvez daqui a dois
meses já não reste nada deste nosso país que nos faça lembrar que alguma vez
existiram autocratas no trono dos nossos antepassados.”
Ela deu-me uma resposta incoerente e levantou a voz, o que
me levou a levantar também a minha. Nessa altura, decidi mudar o tom da
conversa.
“Lembra-te, Alix, que estive calado durante trinta meses!”
Gritei enfurecido. “Durante trinta meses, nunca te disse uma palavra sobre os
acontecimentos escandalosos do governo, do teu governo! Estou a ver que estás
disposta a morrer e que o teu marido é da mesma opinião, mas então e nós? Temos
de sofrer todos por causa da tua teimosia cega? Não, Alix, não tens o direito
de arrastar os teus parentes contigo para o precipício! Estás a ser
profundamente egoísta!”
Alexandra Feodorovna |
“Recuso-me a continuar com esta discussão," disse ela,
friamente. “Estás a exagerar o perigo. Um dia destes, quando não estiveres tão
zangado, vais admitir que eu é que tinha razão.”
Levantei-me, beijei-lhe a mão, ela não me cumprimentou, e
fui-me embora. Nunca mais a voltei a ver.
Quando passei pelo salão lilás, vi o ajudante-de-campo do czar,
o Linevich, a falar com a Olga e a Tatiana. A presença dele, mesmo ao lado do
quarto da czarina, surpreendeu-me. A Madame Vyrobovna, a principal confidente
da Alix durante os últimos anos do regime, e uma grande admiradora do
Rasputine, diz nas suas memórias que “a czarina tinha medo que o grão-duque
Alexandre perdesse a compostura e fizesse algum disparate.” Se isso for
verdade, então a Alix não tinha mesmo noção do que se passava, o que pode
justificar a sua teimosia.
Alexandra, Nicolau e o grão-duque Miguel Alexandrovich |
No dia seguinte, o Misha e eu falamos com o czar, o que foi
uma perda de tempo tanto para ele como para nós. Eu praticamente não consegui
falar. Os nervos e as emoções não me deixaram. “Obrigado, Sandro, pela carta
que me enviaste de Kiev.” Foi a única referência que fez às várias páginas que
lhe escrevi com conselhos.
Alexandre Mikhailovich |
Texto retirado do livro de memórias do grão-duque Alexandre Mikhailovich "Once a Grand Duke".
Muito interessante
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