Pierre Gilliard |
No dia marcado para a
minha primeira lição, uma carruagem real veio para me levar para a Casa de
Alexandria, onde o czar e a família estavam a viver. No entanto, apesar do
uniforme do cocheiro, do brasão imperial nos painéis e das ordens que tinham sido
dadas em relação à minha chegada que, sem dúvida, tinham sido dadas, aprendi
rapidamente que entrar na residência de Suas Majestades não era fácil.
Mandaram-me parar no portão do parque e houve uma discussão de vários minutos
antes de receber permissão para entrar. Quando viramos numa curva, não demorei
até ver dois edifícios pequenos de tijolo interligados por uma ponte escondida.
Se a carruagem não tivesse sido parada, nunca teria pensado que tinha chegado
ao meu destino.
Fui levado para uma
sala pequena, mobilada de forma simples em estilo inglês no segundo andar. A
porta abriu-se a czarina entrou, segurando as suas filhas Olga e Tatiana pela
mão. Depois de fazer alguns elogios, sentou-se na mesa e convidou-me a fazer o
mesmo do lado oposto ao dela. As crianças sentaram-se nas outras duas pontas da
mesa.
Olga e Tatiana na altura em que começaram a receber lições de francês de Gilliard |
A czarina ainda era
uma mulher bonita nesta altura. Era alta e magra e tinha um porte soberbo. Mas
tudo isto deixou de contar quando a olhei nos olhos, aqueles olhos azuis-acinzentados
que falavam e mostravam as emoções de uma alma sensível.
Olga, a grã-duquesa
mais velha, era uma menina de dez anos, muito loira e com uns olhos brilhantes
e marotos e um nariz ligeiramente retoussé. Examinou-me com um olhar que me
pareceu procurar um ponto fraco na minha armadura desde o primeiro momento, mas
havia algo de tão puro e honesto na criança que uma pessoa gostava
imediatamente dela.
A segunda menina,
Tatiana, tinha oito anos e meio. Tinha cabelo castanho-avermelhado e era mais
bonita do que a irmã, mas dava a impressão de ser menos transparente, honesta e
espontânea.
A lição começou.
Fiquei espantado, até embaraçado, pela simplicidade de uma cena que tinha
esperado ser muito diferente. A czarina seguiu tudo o que eu disse muito
atentamente. Senti de forma distinta que não estava a dar uma aula, mas sim a
ser avaliado. O contraste entre o que tinha antecipado e a realidade
deixou-me muito confuso. Para aumentar ainda mais o meu desconforto, tinha a
ideia de que as minhas alunas estavam muito mais avançadas do que realmente
verifiquei. Tinha escolhido certos exercícios, mas estes acabaram por ser
demasiado complicados para elas. A lição que tinha preparado não serviu de nada
e tive de improvisar e contar com outros materiais. Finalmente, para grande
alívio meu, o relógio bateu as horas e marcou o final do meu sofrimento.
Nas semanas que se
seguiram, a czarina esteve sempre presente nas lições das crianças, pelas quais
se interessava visivelmente. Muito frequentemente, depois de as suas filhas
deixarem a sala, a czarina discutia comigo sobre os melhores métodos de ensinar
línguas modernas e ficava sempre espantado pelo bom senso das suas opiniões.
Alexandra |
Desses primeiros
dias, guardei na memória uma lição que dei um dia ou dois antes do problema do
Manifesto de Outubro em 1905 que acabaria na criação da Duma. A czarina estava
sentada numa cadeira baixa, perto da janela. Reparei imediatamente que estava distraída
e preocupada. Apesar de tudo que podia fazer, o seu rosto traía-a e mostrava
uma agitação interior. Esforçava-se obviamente para se concentrar em nós, mas
não demorava a mergulhar novamente num estado de melancolia no qual se acabaria
por perder. O seu trabalho escorregou-lhe dos dedos para o colo. Tinha as mãos
apertadas e o seu olhar, que seguia os seus pensamentos, parecia perdido e
indiferente às coisas que aconteciam à sua volta.
Quando a lição
acabou, fechei o meu livro e esperei que a czarina se levantasse, um sinal de
que me poderia retirar. Desta vez, apesar do silêncio que seguiu o fim da
lição, ela estava tão perdida dos seus pensamentos que não se mexeu. Os minutos
passavam e as crianças começam a ficar inquietas. Abri o meu livro novamente e
continuei a ler. Só um quarto-de-hora depois, quando as grã-duquesas foram ter
com a mãe, é que a czarina se apercebeu das horas.
Alexandra |
Alguns meses depois,
a czarina nomeou uma das damas-de-companhia, a princesa Obolensky, para a
substituir durante as minhas lições. Assim acabou o período de uma espécie de avaliação
à qual tinha sido submetido. Devo admitir que a mudança foi um alívio.
Sentia-me muito mais à vontade com a presença da princesa Obolensky e, além do
mais, ela ajudava-me muito. No entanto, desses primeiros meses, preservei uma memória
vívida do grande interesse que a czarina, uma mãe com grande sentido de responsabilidade,
tinha pela educação dos seus filhos. Em vez da imperatriz fria e altiva de quem
ouvi falar tanto, e fiquei espantado por estar na presença de uma mulher
completamente dedicada às suas obrigações maternas.
Também foi nesta
altura que comecei a aperceber-me de certos sinais de reserva que tantas
pessoas tinham levado a mal e lhe tinham valido tantos inimigos, eram na
verdade sinais de uma timidez natural e, como tal, uma máscara para esconder a
sua sensibilidade.
Alexandra Feodorovna |
Vou dar um pormenor
que ilustra o interesse da czarina na educação dos seus filhos e a importância
que dava a estes mostrarem respeito pelos seus professores mostrando aquele sentido
de decoro que é o primeiro elemento das boas maneiras. Enquanto esteve presente
nas minhas lições, quando eu entrava na sala, encontrava sempre os livros e os
cadernos empilhados de forma organizada nos lugares das minhas alunas na mesa e
nunca tive de esperar um momento. O mesmo continuou a acontecer depois. Ao
longo do tempo, às minhas primeiras alunas, Olga e Tatiana, juntaram-se a
Maria, em 1907, e a Anastásia, em 1909, anos em que, respectivamente, completaram
9 anos de idade.
A saúde da czarina, que
tinha já sofrido pela sua ansiedade devido à ameaça que havia sobre o
czarevich, foi impedindo-a de seguir a educação das filhas. Na altura não me
apercebi qual seria a causa da sua aparente indiferença e senti-me inclinado a censura-la,
mas não demorou muito até que os acontecimentos me mostrassem que estava
errado.
Alexei e Pierre Gilliard |
Texto retirado do livro "Thirteen Years at the Russian Court" de Pierre Gilliard.
Mais uma fracção tocante do lado mais privado da última czarina da Rússia. Cada vez me revolto mais.... :(
ResponderEliminar